quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Colesterol: o que o médico não lhe diz.

O professor Wanderley Marques Bernardo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é um sujeito persistente. Não sossega enquanto não prova por A mais B que as vantagens apregoadas pelo fabricante de determinado remédio são excelente peça de marketing baseada em ciência discutível. Nos últimos seis anos, Bernardo se dedica a avaliar o custo-benefício de tratamentos. Cirurgião torácico, trocou o bisturi pelo laptop. Cruza inúmeros dados para responder às secretarias de Saúde se vale a pena comprar as novidades oferecidas pela indústria. Um de seus alvos preferidos são os remédios para reduzir o colesterol. Ele não está sozinho. As drogas mais usadas para esse fim - chamadas estatinas - têm sido motivo de grandes discussões. Uma das mais importantes aconteceu em abril, durante o congresso do American College of Cardiology, realizado em Chicago, Estados Unidos. Análises feitas por diferentes pesquisadores em todo o mundo sugerem que o benefício dos remédios pode ser bem menor que os consumidores imaginam.
O debate foi iniciado por especialistas da chamada medicina baseada em evidências. A área criada nos anos 80 por David Sackett, da Universidade McMaster, no Canadá, é composta de médicos que tentam avaliar se um tratamento faz diferença a partir da análise fria dos estudos publicados. Não estão preocupados com histórias pessoais de sucesso ou insucesso. A ferramenta deles é a estatística. Bernardo aprendeu o novo ofício na Universidade de Oxford. "É importante que a população seja esclarecida sobre os limites da ciência e dos remédios", diz. "É uma forma de minimizar o marketing malvado que não educa ninguém."
As estatinas são a maior história de sucesso da indústria farmacêutica. Nenhuma outra categoria rendeu tanto dinheiro. São consumidas por 25 milhões de pessoas no mundo. No ano passado, produziram um faturamento de US$ 27, 8 bilhões. Metade desse valor foi conquistada pelo Lípitor (atorvastatina), da Pfízer. Em faturamento, ele é o primeiro do ranking da indústria. Os brasileiros compram nas farmácias 1 milhão de caixinhas de estatina a cada mês. O mais consumido é o genérico sinvastatina. O número dois é o Lípitor.
A forma agressiva como ele é anunciado ajuda a explicar tamanho sucesso. Nos EUA, a propaganda de remédios vendidos com receita médica pode ser feita diretamente ao consumidor. Isso não ocorre no Brasil, onde as empresas procuram convencer os médicos a receitar seus produtos. Pelas regras americanas, os anúncios de remédio podem aparecer em qualquer parte: TV, revistas, jornais, outdoors. Segundo o anúncio do Lípitor, o remédio reduz em 36% o risco de infarto em pacientes com outros fatores de risco além do colesterol alto (hipertensão, por exemplo). Poucos consumidores prestam atenção ao asterisco e às letras pequenas colocadas no pé da página.
Elas informam que, num amplo estudo, 3% dos pacientes que tomaram pílulas sem efeito (placebo) tiveram um infarto. No grupo que tomou Lípitor, o índice foi de cerca de 2%.
O que os números significam? A cada cem pessoas, três no grupo placebo e duas no grupo do remédio tiveram um infarto. O benefício creditado à droga é de um infarto a menos a cada cem pessoas. Ou seja: para evitar um infarto, é preciso que cem pacientes tomem o remédio por mais de três anos. É o que os estatísticos chamam de número necessário para tratar (NNT). Os outros 99 pacientes não tiveram nenhum benefício mensurável.
E de onde vieram os 36%? Isso é o que os especialistas chamam de risco relativo, uma artimanha freqüentemente usada pela indústria para tornar mais atraentes os resultados dos estudos. A conta não é mentirosa, mas não expressa com clareza o real benefício dos remédios. O risco de infarto verificado no grupo que tomou Lípitor (1,94%) é dividido pelo risco observado no grupo placebo (3%). O resultado da divisão é 0,64. O passo seeguinte é verificar quanto o remédio evitou que os riscos fossem iguais nos dois grupos. Basta subtrair 0,64 de 1. O resultado é 0,36, ou 36%.
Dizer que o remédio reduz o risco em 36% é mais impactante que explicar que apenas um infarto em cem será evitado, certo? "É verdade que a publicidade usa a cifra mais bombástica", diz Eurico Correia, gerente-médico de grupo de produtos da Pfizer. "Mas a redução de risco de 1 % ou 2% no enorme universo de consumidores significa salvar a vida de muita gente."
Sim, mas, em nome da transparência que os consumidores merecem, eles precisam saber que poucos terão vantagem. ''A maioria está tomando um remédio sem ter nenhuma chance de benefício e sofrendo o risco de enfrentar efeitos colaterais", disse James M. Wright, professor da University of British Columbia, à revista Business Week. Wright concluiu que as estatinas salvam vidas no grupo de pessoas que já tiveram um infarto. Nessa situação, os remédios realmente evitam a ocorrência de novos infartos e reduzem o risco de morte. Para essas pessoas, as estatinas são fundamentais.
No caso de quem nunca infartou, a situação é diferente. Wright verificou uma grande redução nos níveis de colesterol em homens de meia-idade que tomam estatinas. Mas a queda no número de infartos foi pouco significativa. Apesar dessas evidências, o bombardeio da propaganda pró-estatina é fortíssimo nos EUA. Alguns especialistas chegam a dizer - ainda que em tom de brincadeira - que as estatinas são tão importantes para o combate das doenças cardiovasculares que deveriam ser colocadas na água encanada, como o flúor que evita cáries.
No Brasil, não se escuta esse tipo de comentário, mas poucos médicos têm uma visão crítica em relação aos remédios. A maioria dos pacientes que chega ao consultório com colesterol um pouco acima do normal sai com receita de estatina. Além das principais marcas - Lípitor (atorvastatina) e Crestor (rosuvastatina) -, há vários produtos genéricos (sinvastatina, pravastatina, lovastatina ... ). Seu benefício na prevenção do primeiro infarto é semelhante ao do Lípitor.
Um estudo divulgado no congresso do American College of Cardiology gerou mais discussão. Os médicos ouviram os resultados da pesquisa realizada com o remédio Vytorin, fruto da parceria entre as empresas Merck e Schering-Plough. A droga é uma combinação entre uma estatina genérica (sinvastatina) e outro tipo de redutor do colesterol chamado Zetia. O estudo revelou que o Vytorin não é mais eficaz que o produto genérico consumido isoladamente. Segundo os fabricantes, o estudo não é prova de que o Vytorin não funciona. As empresas argumentam que a pesquisa avaliou apenas o efeito do remédio sobre a espessura da artéria carótida - um parâmetro usado para analisar o acúmulo de colesterol e prever o risco de infarto. De fato, o estudo não responde definitivamente se o remédio reduz ou não o risco de infarto ou derrame. Mas as empresas conheciam o resultado do estudo e só o divulgaram quase dois anos depois do término da pesquisa. Enquanto isso, continuaram ganhando muito dinheiro com oVytorin, que custa três vezes mais que o remédio genérico.
A justificativa dos médicos para tantas prescrições é a necessidade de combater o colesterol ruim (LDL) e aumentar o colesterol bom (HDL).O LDL contribui para a formação de placas de gordura nas artérias. Isso prejudica a passagem do sangue e aumenta o risco de infarto e derrame. O HDL age como um detergente nas artérias, ajudando a eliminar o LDL. Os remédios atuam nas duas frentes. Nos últimos anos, as metas de colesterol preconizadas pelas entidades médicas caíram sensivelmente. No início dos anos 90, um LDL de 130 miligramas por decilitro de sangue era considerado normal. Atualmente, é desejável que seja inferior a 100 miligramas por decilitro. Pessoas com outros fatores de risco além do colesterol (tabagismo, hipertensão, diabetes, histórico de infarto na família, obesidade, sedentarismo, nivel elevado de triglicérides) devem manter o LDL em 70 miligramas por decilitro. É possível reduzir o colesterol com a adoção de uma vida saudável - atividade física, alimentação baseada em carnes magras, fibras, frutas e cereais integrais. A maioria das pessoas, no entanto, não consegue uma redução tão drástica sem tomar os remédios. Se as metas de colesterol continuarem caindo ano após ano, em breve talvez ninguém escape de tomar as estatinas. E, na maioria dos casos, sem ter benefício.
Os céticos desconfiam da isenção dos comitês que preparam as diretrizes americanas. Essas diretrizes acabam sendo adotadas em boa parte do mundo - incluindo o Brasil. "É quase impossível encontrar alguém que acredite firmemente nas estatinas e não tenha nenhum vínculo com a indústria farmacêutica", afirma Rodney A. Hayward, professor da Universidade de Michigan. Houve uma grande controvérsia quando foram divulgadas as metas de colesterol de 2004. Oito dos nove especialistas tinham vínculos com a indústria.
"Em quase todas as áreas da medicina, uma mesma droga parece ser mais benéfica nos estudos bancados pela indústria que nas pesquisas financiadas pelos governos", disse a ÉPOCA Nortin M. Hadler, professor de Medicina da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill. Hadler é um crítico da indústria farmacêutica e autor do livro The Last Well Person - How ta Stay Well Despite the Health-Care System. Em português, algo como A última Pessoa Saudável- Como Ficar Bem Apesar do Sistema de Saúde. "É fundamental que a sociedade aprenda o que é o NNT e passe a cobrar essa informação dos médicos e dos fabricantes".
O NNT de 100 verificado no caso das estatinas é altíssimo quando comparado com o de outros remédios. Para evitar um infarto em hipertensos, é preciso tratar três pacientes com aspirina (NNT de 3). Para evitar uma morte por meningite, é preciso tratar um paciente com dexametasona (NNT de 1). É fundamental considerar o NNT e também o risco de efeitos colaterais. Que vantagem leva o paciente que paga caro por um remédio, não tem beneficios e ainda sofre reações indesejadas?
"Cerca de 30% dos consumidores de estatinas sofrem algum tipo de efeito colateral, mesmo que seja leve", diz a cardiologista Suzana Alves da Silva, do Departamento de Pesquisa Clinica do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro. Podem ocorrer dores musculares, desconfortos gastrintestinais, náuseas, constipações, insônia. Alguns estudos apontaram dificuldades de memória e até câncer, mas isso não foi confirmado. A pior ameaça é uma grave doença muscular (rabdomiólise), que pode levar à insuficiência renal e à morte. É algo raro: afeta uma pessoa a cada 4 milhões. Em 2001, a estatina Lipobay (cerivastatina), da Bayer, foi retirada do mercado devido ao número de pacientes que apresentaram o problema. Nos Estados Unidos, 31 consumidores do remédio morreram.
Nem sempre os médicos mencionam o risco de efeitos colaterais. A ênfase é colocada nos benefícios do remédio, como se ficar sem eles fosse um atentado contra a vida. A artesã Célia Caram, de 50 anos, recebeu sua primeira receita de estatina há oito anos. "O médico de meu marido disse que eu deveria tomar o remédio porque, na menopausa, ficar sem ele é óbito na certa". A lógica por trás desse raciocínio é que a redução dos níveis de estrógeno (um protetor das artérias) durante a menopausa aumenta o risco de infarto. O colesterol de Célia não era extremamente alto (LDL de 176), mas ela era ex-fumante e seu pai havia morrido de complicações após uma segunda cirurgia de ponte de safena. Esses fatores pesaram na decisão do médico. Talvez Célia pudesse ter tentado baixar o colesterol com exercícios e mudanças na dieta antes de começar a tomar remédios. Mesmo com as pílulas, ela decidiu melhorar seu estilo de vida. Caminha uma hora por dia e depois faz alongamento em praças públicas. Duas vezes por semana, emenda esse exercício com as aulas de ioga. O colesterol baixou para 109, e Célia pensa em parar de tomar o remédio. ''A estatina faz parte de um conjunto. Não faz milagre", diz.

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